Edinha Diniz recebe a medalha Chiquinha Gonzaga

A honraria foi criada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro com o objetivo de homenagear personalidades femininas que reconhecidamente tenham se destacado em prol das causas democráticas, humanitárias, artísticas e culturais, no âmbito da União, Estados e Municípios.
Em 2008, Edinha Diniz, biógrafa de Chiquinha Gonzaga, foi homenageada juntamente com a bailarina Ana Botafogo, a repórter e jornalista Glória Maria (na presença de sua mãe) e atriz Dercy Gonçalves. Também estiveram presentes na cerimônia a atriz Rosamaria Murtinho, que interpretou Chiquinha no teatro, a pianista Maria Teresa Madeira e o pianista e responsável pelo site ChiquinhaGonzaga.com Wandrei Braga.

Edinha Diniz (foto: Maria Clara Wasserman)

A seguir, o discurso que Edinha Diniz proferiu na ocasião, na íntegra.

“Gostaria de saudar a iniciativa da Câmara Municipal do Rio de Janeiro pela instituição da medalha Chiquinha Gonzaga, cumprimentar todos os vereadores, em especial a vereadora Aspásia Camargo, e fazer alguns comentários sobre a patrona da condecoração.

A mulher que hoje dá nome à medalha concedida por esta Casa Legislativa percorreu um longo trajeto antes de ter reconhecimento público. Sua memória, engrandecida por este ato, deve tributo de gratidão a inúmeras pessoas que vêm trabalhando e reclamando para ela uma posição de destaque na memória coletiva do povo brasileiro. Algumas dessas pessoas, da nova geração de admiradores de Chiquinha Gonzaga, estão aqui no plenário, a quem agradeço a presença.

Mas quero lembrar também duas mulheres ausentes que contribuíram nesse sentido: Mariza Lira, a folclorista que nos deu o registro primeiro da vida da compositora, ainda nos idos de 1939, em trabalho pioneiro de biografia na área de música popular brasileira; e Ângela Cozetti Pontual, jornalista hoje radicada em Nova York, a quem devemos a intuição extraordinária de que a verdadeira história da Chiquinha ainda não estava contada, abrindo para mim o caminho do acervo pessoal da maestrina e a posterior reavaliação dessa história.

Durante um século o povo veio mantendo vivo o espírito determinado de Chiquinha Gonzaga através da marchinha Ó Abre Alas. A intuição genial da compositora ao traduzir a vontade popular de abrir alas para passar e vencer, fez essa canção atravessar o tempo como a sua obra mais popular. Tão popular que sombreava a autora, pois era, por muitos, considerada de domínio público. Exatamente um século depois de batizar o carnaval com a primeira marchinha, chegou a vez de a autora tornar-se também popular, graças à força do teatro e da televisão como meios de comunicação. E Chiquinha penetrou fundo no imaginário nacional.

Até então, o grande público a desconhecia. Mas o que fez com que essa personagem ficasse à margem da história do país que ajudou a construir? Por que estava esquecida? Teria sido deliberadamente escondida? Eram essas as perguntas que eu me fazia trinta anos atrás, no início da pesquisa que resultou na redescoberta da compositora e maestrina carioca. A todo o momento, sentia o silêncio que costuma punir a memória dos transgressores. Encontrei uma resistência sem trégua entre seus descendentes. Suas netas ainda sobreviventes negavam-lhe a presença em porta-retrato, para não denunciar o parentesco vergonhoso. Quando faleceu a última neta, foi encontrada, sob o pano bordado do seu oratório, uma foto da avó, dobrada, numa tentativa de escondê-la até de Deus!

Mas, já nos alertou Machado de Assis, contra a conspiração do silêncio e da indiferença, os grandes têm um aliado invencível: a conspiração da posteridade. Este foi o caso de Chiquinha Gonzaga. Ela foi resgatada, redimensionada, e nessa redescoberta se revelou uma mulher contemporânea, exatamente por conta do que tentaram silenciar em sua biografia: o conflito com que viveu a maternidade e a sexualidade.

Como os filhos lhe foram praticamente tirados, sob a alegação de não constituir, sobretudo para as meninas, o modelo de virtude exigido a uma mãe de família; e como lutou para conciliar a atividade profissional com a maternal, Chiquinha Gonzaga terminou criando apenas o filho mais velho. No entanto, sua biografia havia sido retocada para não chocar seus contemporâneos e justificar seu trabalho fora de casa como necessário à sustentação dos filhos. O fato é que, naquela época, a maternidade era uma fatalidade para a mulher. E soa no mínimo curiosa a idéia de que esta mulher que recusou o papel tradicional de mãe seja considerada hoje a mãe da música popular brasileira.

A questão da sexualidade ainda é vista como mais escandalosa. Depois de abandonar o casamento, Chiquinha viveu uma união livre, teve mais uma filha, e em seguida se profissionalizou como compositora e intérprete de um gênero de música para danças consideradas licenciosas. Ocorre que a originalidade estava exatamente em incorporar às danças européias a rítmica africana, que sabemos se caracterizar pela síncope, esse vazio no tempo da música que convida o corpo a participar. Portanto, parece impossível trabalhar esse tipo de música sem sensualidade.

Por viver muito à frente do seu tempo, Chiquinha Gonzaga gerou mais escândalo que exemplo. A História parecia só registrar entre as brasileiras ilustres heroínas virtuosas e abnegadas. Foi preciso esperar um século e meio para que seu comportamento fosse compreendido e ela tivesse um reconhecimento à altura da sua contribuição ao país.

Em resumo, a história de Chiquinha Gonzaga é a história de uma sinhazinha do Segundo Reinado, educada segundo os padrões da época, com um casamento arranjado pelo pai, também segundo os padrões da época. Acontece que a sinhazinha em questão, rebelde e corajosa, rompeu com o casamento e deu um destino inédito ao aprendizado de piano que recebera. Em vez de brilhar nos salões da corte de Dom Pedro II, tornou-se professora de piano, pianista de conjuntos musicais, compositora e maestrina. Encerrou a carreira profissional como líder de sua classe ao fundar a primeira sociedade protetora e arrecadadora de direitos autorais do país. Enfim, uma trajetória de sucesso.

Do ponto de vista pessoal, sua vida também foi um sucesso. Contrariando a expectativa social de que, à transgressão feminina, correspondesse estigmatização e infelicidade, ela respondeu com a felicidade pessoal ao lado do companheiro trinta e seis anos mais jovem. Um comportamento ousado ainda nos nossos dias. Chiquinha Gonzaga não é apenas a pioneira da emancipação feminina no país, conquistando essa independência com uma atividade inédita para a mulher de sua época (nunca é demais lembrar que a palavra maestrina foi criada para ela), mas é também pioneira no uso pleno da liberdade pessoal, o que exerceu com uma antecedência histórica escandalosa.

Concluindo: Chiquinha Gonzaga deu uma contribuição decisiva à cultura brasileira ao criar as bases sobre as quais se construiu a música popular; ao elaborar a síntese musical entre influências européias e africanas; e ao fixar uma rítmica brasileira. Para a tarefa, foi fundamental sua coragem pessoal. A compositora que se serviu, sem preconceitos, de todos os gêneros musicais que encontrou, foi a mesma mulher que passou a vida desafiando preconceitos. Por fim, nos deixou sua palavra de ordem: abrir alas, passar e vencer!”

Edinha Diniz, Rio, 10/03/2008

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