O periódico do JORNAL DO BRASIL, RJ, de 18 de outubro de 1939 publicou:
CHIQUINHA GONZAGA
Viva fosse, ela teria ontem completado noventa e dois anos. Rumava serenamente ao centenário, forte, saia, com uma alegria disposição para viver, quando aquela mão fatídica que nos espera de emboscada após o acorde final na sua pauta harmoniosa e florida.
Tive a sorte de conhecê-la muito de perto. Eu era ainda menino, mal entrado para o Colégio Militar, e a maestrina, a primeira no Brasil desse título, já frequentava a nossa casa, onde, uma vez por semana, se reuniam, em prolongadas horas, artistas, o que de bom se assinalava no Rio daquele tempo. Aos sábados, depois das portas comerciais fechadas, o que vale dizer, depois das onze da noite, chegava a ótima Estudantina Euterpe, de moços finos e educados que trabalhavam no Parc Royal. Com eles, dirigindo o grupo, palreira e jovial, vestida meio a homem, vinha Chiquinha Gonzaga. Confundia-se com os rapazes. Pouco se distinguia deles, com o rosto moreno e satisfeito, o sorriso simpático a sublinhar a expressão dos lábios, um petulante canotier á cabeça grisalha, e o seu inseparável broche de ouro com o primeiro compasso da Walkyria, a sua melhor valsa.
Entrava, em alarido de festa, avançava ao plano e dava início aqueles memoráveis concertos em que se enalteciam os méritos do seu afinado conjunto. Estava muito em voga o buliçoso Corta-jaca, o samba (tango) de Chiquinha que tanto se celebrizou na política e na sociedade, a ponto de apelidar um quadriênio governamental. Era uma página deliciosa, de ritmo bem brasileiro, dengues de sertaneja enamorada no doce entrecho melódico, queixumes de pomba aflita nos arpejos sentidos e um manso arrastado de plumas na fulva areia do chão. Com isso, a grande musicista amava rematar os seus programas, e punha-se ao teclado, extasiada, a boca semiaberta num gozo indescritível, enquanto a sua gente – os que sopravam nas flautas e clarinetes maviosas, os que dedilhavam nos violões e nos banjos, os que marcavam a cadência lubrica com as caixas e os chocalhos – seguia-lhe a melopéia, suspensa da sua caprixhosa vontade .
Quando partiam, os olhos tresnoitados, cantavam galos nos quintais vizinhos e as cornetas do Colégio davam o toque rubro de alvorada.
Muitos anos passei sem ver Chiquinha Gonzaga, tão boa amiga de meu pai, daquela geração esplêndida de poetas notáveis, de escritores de polpa, de teatrólogos inspirados, de maestros de valorosa linhagem. Por último, se eu queria ter notícias dela, bastava ir às vesperais do Recreio. Lá estava a artista, na sua frisa junto ao palco, a brincar com as atrizes, a encorajar os atores, a responder às saudações da orquestra, cujos músicos, respeitosos e crentes, eram como seus filhos estremecidos.
O que irritava a sua intolerância era, porém, a música moderna. Detestava jazz-band, enervada com as explosões bárbaras dos instrumentos de pancadaria e a feição irreverente das peças americanas. Quase chorou, certa vez, confessou-me com mágoa, ao escutar, em doida fantasia, o meigo, o evocativo, o divinal Sonho de Amor, de Liszt. E sempre que a orquestra do teatro terminava um número, ela exclamava para mim, indignada, sem querer mal aos intérpretes, mas deplorando as dissonâncias: Por favor, ora diga-me você, isto é música?
E ficava aturdida, a remexer-se na cadeira, a relembrar a era distante das harmonias suavíssimas em que ela mesma tanto se exaltou, para enfim retirar-se, lançando aos seus amigos da charanga um largo adeus protetor e materno que envolvia uma graça e um predão.Dois músicos do Brasil contemporâneo merecem, sobre todos, a nossa consagração e a nossa estima: Chiquinha e Ernesto Nazareth. São as mais representativos da arte puramente brasileira. Jamais urdiram um só compasso que se deixasse influenciar de alma estranha, saindo tudo no reflexo da sua própria alma. Descreveram a nossa terra e a nossa gente no teor delicado de composições características que não logram nem comportam imitação. Simplesmente porque eles não imitaram. Seria o mesmo que arremedar na mata o canto do sabiá ou deturpar numa teia a placidez merencória de um luar.
Ambos passavam, um após outro. Chiquinha, em meio aos seus, com uma oração (que por certo pôs em música) a flor dos lábios moribundos, Ernesto, de pé, no fundo de uma cachoeira entre lírios a se infiltrar pelos ouvidos surdos.
Morreram como viveram.
E eu, que os prezei como a irmão, rogo daqui, para a sua memória, uma terna saudade, e para a sua arte, uma expressão de agradecido afetoQuando outra coisa não nos houvesse legado, umas singelas páginas musicais de que amanhã ninguém se lembrará, foi Chiquinha Gonzaga quem um dia de Finados, levando flores aos seus mortos de Catumbi, descobriu no chão raso, rasteiro e humilde como as ervas que o vestiam, e fê-lo erguer um monumento, o túmulo do homem-sol que imaginou o Hino Nacional.
Gastão Penalva
Fonte: Hemeroteca Digital / Biblioteca Nacional