Chiquinha Gonzaga é homenageada no programa de rádio Hora da Saudade em 1940

O periódico Jornal do Brasil, RJ, de 27 de fevereiro de 1940, anuncia homenagem a Chiquinha Gonzaga no programa de rádio “Hora da Saudade”…

Transcrição da notícia
Chiquinha Gonzaga na “Hora da Saudade”

Acaba de chegar-nos do São Paulo uma grata notícia que, nesta Quarta-feira, dia 28, às 22 horas, a Rádio Difusora São Paulo, aproveitando a passagem do 5° aniversário da morte de Francisca Gonzaga, vai dedicar-lhe todo o programa da já popular e consagrada Hora da Saudade – criação feliz de Decio Pacheco Silveira, inspirada no sentimento mais puro e desinteressado de brasilidade. Ao que nos informam, serão executadas em orquestra, nesse programa, uma série de músicas escolhidas da grande compositora popular carioca. Reviveremos, assim, nessa noite, os velhos tempos do Brasil Imperial – tempos bem distantes, anteriores a Abolição da Escravatura, em que Já era popular entre nós o nome de Chiquinha Gonzaga.

Não nos surpreende essa iniciativa: pois não é a primeira, nem a segunda vez que a Hora da Saudade nos tem proporcionado momentos de verdadeira ressurreição das velhas tradições brasileiras; mas a notícia de que a homenageada, desta vez, vai  ser Chiquinha Gonzaga, tem um sentido todo especial para nós cariocas e para todos nós que acompanhamos de perto a evolução da musica brasileira. Sentimo-nos algum tanto à vontade, veiculando essa notícia, de tanta significação para nós. Há cerca de dois anos, durante uma palestra com Gilberto Freire esse grande inspirador dos estudos sociais no Brasil – sobre a música brasileira, lembramo-nos de que havia ainda nesse campo imenso de estudos uma lacuna a preencher, que era a interpretação do sentido social profundo da nossa música, nas suas raízes psicológicas e culturais. Desde então, vimos coordenando grande soma de material com case objetivo — tarefa que nos foi facultada por certas circunstâncias particulares da nossa formação musical. Nessa análise detalhada e objetiva, alguns fatos expressivos têm vindo à luz. Entre estas, figura a significação da obra de Chiquinha Gonzaga na evolução da nossa música popular.

É curioso que historiadores da nossa música, como Guilherme de Melo e Vincenzo Cernicchiaro, só lhe tenham feito muito rápidas e insignificantes referências; que outros estudos do nosso folclore musical não lhe tenha dado ainda a importância a que faz jus. 

Chiquinha Gonzaga imprimiu em nossa música popular um caráter original, qualquer coisa que havia de medrar e reproduzir-se por imitação nos compositores que a sucederam. Sua inspiração trazia para a voz do povo e para a dança do povo algo de profundamente recalcado na família brasileira: a alma cia mulher oprimida no regime patriarcal, sufocada pelos preconceitos sociais. Quantas almas de artistas não se perderam, quantas não se estimularam nas quatro paredes dos lares, quantas não foram vencidas pelo meio intransigente? Conheço um caderno de mulher – talvez um dos raros cadernos escritos por mulher brasileira do século XIX – em que a autora, esposa de um fazendeiro de café muito mais velho do que ela, se derrama em páginas românticas, descrevendo a Natureza, as manhãs de sol e noite de lua, fazendo poemas em prosas nos momentos de solidão. Quantas não viveram assim, querendo expandir-se mas mergulhando sempre no silêncio e na clausura dos imensos lares patriarcais? 

A obra de Chiquinha Gonzaga representou um movimento individual de emancipação da mulher brasileira, numa época remota em que tudo ainda era tão difícil. Sua música, fácil, cheia de dinamismo, impregnada de acentos sinceros, trouxe algo de novo e de ignorado até então: a inspiração criadora de uma mulher, que se identificava com a alma do povo. Pouco mais ou menos na mesma época surgiam, é verdade, outras mulheres brasileiras compositoras: era Ernestina Índia do Brasil Guimarães, por exemplo, compondo valsas e polcas: era Joana F. Pereira, compondo o famoso noturno Ipiranga, que fez sucesso nas reuniões elegantes; era Matilde Ballarini Zucchi compondo Uma lágrima, uma das mazurcas de maior sucesso popular: era Maria Amélia de Paiva, eram muitas outras do fim do Segundo Império e dos primeiros anos da República. Mas nenhuma delas saía dos salões; suas músicas tinha aquele ar tímido e recatado que espiava por detrás das frestas das venezianas e [..] influência direta da música de salão pautada nas peças italianas e francesas; mesmo aquelas que se tornaram populares, como a autora de Uma Lágrima, por exemplo, não usavam insistir, ir adiante, edificar uma obra musical essencialmente popular. 

Coube a Chiquinha Gonzaga esse mérito. Soube arrostar com o fardo ingrato da popularidade de uma mulher em sua época; mas por isso mesmo, deixou na evolução da música popular brasileira um traço vigoroso e inapagável da sua passagem. O estilo fácil, o canto sem palavras de suas melodias, aquele sabor de frescura, de graça, aquele contraste de alegria de suas peças mais movimentadas para dança – como as polcas Sultana, Atraente, Camila, por exemplo – com a de tristeza feminina de algumas de suas valsas de concerto – como Plangente, Desalento e sobretudo essa admirável peça que é a valsa Harmonias do Coração, de tão expressiva melodia e tão admiráveis efeitos sinfônicos – tudo representou uma conquista original da nossa música popular., algo que surgia pela primeira vez, algo criado pela única alma capaz de criá-la no Brasil escravocrata: uma alma de mulher, mista de inspiração romântica e de coragem para aceitar a consagração popular.  

O estilo de Chiquinha Gonzaga impõe-se daí por diante. Compositores de tanguinhos, de maxixes, de polcas e lundus, de valsas e habaneras imitaram-na muitas vezes sem sentir; imitaram-na mesmo, às vezes, sem a conhecer, pois já tinham o ouvido habituado ao seu estilo que passara para a boca do povo. É impossível ao historiador ou ao sociólogo da música brasileira compreender esse período da nossa música popular sem estudar a obra de Chiquinha Gonzaga

ALMIR DE ANDRADE

Fonte: Hemeroteca Digital / Biblioteca Nacional Digital

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