Ó Abre Alas, o hino carnavalesco

Partituras: Canto e piano (acervo Digital) e piano solo (Arr. Wandrei Braga)

Atenção!

Abre alas com letra … Peço licença / Pra poder desabafar / A jardineira abandonou / O meu jardim… NÃO é de Chiquinha Gonzaga. Saiba mais!

No começo era o entrudo, um verdadeiro carnaval de água. Limões-de-cheiro, gamelas de água, seringas (de folhas-de-flandres) se encarregavam do dilúvio que transformava as ruas do Rio quase em um prolongamento da Baía de Guanabara. Farinha de trigo, pó de sapato, alvaiade e piche completavam esses banhos coletivos, a brincadeira suja e violenta. O enorme consumo de água era alertado pela imprensa. Nesses dias todos abandonavam a seriedade para jogar o entrudo. As mulheres mostravam-se implacáveis em molhar os cavalheiros. “As moças brasileiras têm gênio melancólico e vivem retiradas – observou um estrangeiro – mas nesta época parecem mudar completamente de índole, e, durante três dias, sua gravidade, sua natural timidez se apagam em risadas sem fim.”
Nos salões a sociedade se divertia com os bailes mascarados, organizados em hotéis e teatros (o clube só iria aparecer depois). As orquestras atacavam os gêneros populares mais em voga. O teatro Cassino, por exemplo, anunciava para o baile do carnaval de 1877 habaneras dengosas, quadrilhas prometedoras, valsas escolhidas, mazurcas quebradiças e polcas crepitantes.
Em 1853, por determinação do chefe de polícia, o entrudo estava proibido. Isso não significou o seu desaparecimento definitivo, mas só a partir daí pôde entrar em cena o carnaval propriamente dito.

Entrudo na Rua do Ouvidor – Angelo Agostini (1884).

Até então a festa de rua era sem melodia e sem ritmo. O barulho ficava por conta de vaias, vozerios e brigas. Por volta de 1852, o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes saiu às ruas apresentando uma novidade: em grupo tocavam bombos aos gritos de “zé-pereira”. Estava criada a percussão e introduzia-se assim no carnaval uma das características mais fortes desta festa.
Mas música realmente ainda não tinha ocorrido a nenhum compositor. A não ser que consideremos como canção carnavalesca o estribilho que o país inteiro passou a cantar. É que em 1869 a companhia do empresário Heller resolveu representar “O zé-pereira carnavalesco/Coisa cômica que se deve parecer muito com Les pompiers de Nanterre/arranjada pelo artista F.C. Vasques”. Tratava-se de uma paródia à opereta de Offenbach, em ato único, onde quatro atores abriam o espetáculo imitando o zé-pereira do Nogueira que, comovido, assistia da platéia. Eram: Joaquim Madruga (funileiro e que toca clarineta, para maçar o próximo, nos dias de carnaval), João Pimpão (charuteiro, tocador de zabumba, pelo mesmo motivo), José da Véstia (vendedor de galinhas e tocando caixa de rufo por sua conta e risco) e Manuel Ferreiro (assoprador de fagote, para prejuízo dos tímpanos da humanidade).
Cantavam, ao tempo em que tocavam seus instrumentos:

E viva o zé-pereira!
Pois que a ninguém faz mal
E viva a bebedeira
Nos dias de carnaval!
Zim, balada! Zim, badala!
E viva o carnaval!

Além do teatro, as sociedades carnavalescas – Tenentes do Diabo, Fenianos e Democráticos – adotaram a novidade e deram entrada a ela em seus salões. É ainda da década de 1850 a criação das grandes sociedades e dos seus desfiles ou préstitos, como chamavam.
Mas no final do século a expressão mais popular do carnaval de rua era o cordão. Surgido na década de 1880 estendeu-se rapidamente como fenômeno de bairro e, no começo deste século, já existiam mais de 200 entre a Urca e o Caju. O cordão era o próprio carnaval entendido como núcleo irredutível da folia carioca, no dizer do cronista João do Rio.
O seu crescimento acelerado pode ser entendido em função do espírito associativo que o carioca começava a conhecer. Era para as massas o correspondente do clube político para o senhor, e até mesmo das sociedades carnavalescas para os mais bem situados socialmente. Parece também significativo observar que o crescimento dos cordões carnavalescos se dá paralelo à campanha abolicionista. É a fase das agremiações, do desenvolvimento de um estilo de vida mais urbano, de uma mais intensa participação social e, portanto, do agrupamento de indivíduos com interesses comuns. Assim eles se reuniam com antecedência para se divertir e criticar os fatos que mais os impressionavam, pois a crítica era uma característica tão forte dos cordões que parecia mesmo sua única finalidade. Afinal o carnaval era “o sagrado dia do Deboche ritual”, e assunto nunca faltou para o folião/cidadão.
Cada cordão tinha suas cores definidas e usava instrumentos de percussão. Nos títulos era comum qualificativos como “caprichosos” e “teimosos” ou nomes de plantas e flores. Também se preocupava em maravilhar com ouro, prata e diamante e utilizá-los como título. Algumas destas características se mantiveram durante o processo evolutivo que transformaria o cordão em rancho e este nas escolas de samba modernas.
Na rua dançava-se ao som de baterias cadenciadas e entoava-se canções monótonas, bruscas pela pobreza melódica e sem harmonia. Valia tudo: cantigas de roda, hinos patrióticos, canções folclóricas, trechos de óperas, árias de operetas, fados lirós, quadrinhas musicadas na hora e até marcha fúnebre. Muito comum era cantarem chulas. Uma inclusive, a chula do velho, atravessou o tempo:

O raio, ô sol
Suspende a lua
bravos ao velho
que está na rua.

Também havia as bandas tocando os gêneros de música de salão e muito vozerio, principalmente de mascarados espirituosos.
No final do século os cordões já entoavam algumas canções, ora de empréstimo, ora improvisadas, e era comum se utilizarem de uma marcha, com versos pedindo para abrir alas e apresentando o nome do cordão.
Enquanto isso se dava na rua, os salões mantinham seus bailes. Todos os teatros organizavam bailes mascarados. Sempre atenta a tudo que a rodeava Chiquinha escrevia músicas especialmente para a festa. Entre elas: O Diabinho, tango carnavalesco, Democrático, tango (cordão dos bichos), Evoé, tango carnavalesco, Viva o Carnaval!!!, polca, etc.
Início do ano de 1899. Morava Chiquinha no bairro do Andaraí onde o cordão Rosa de Ouro tinha a sua sede. Naquela tarde ensaiavam. A maestrina sentou ao piano e compôs uma música inspirada no cordão. Esta atitude banal, por incrível que pareça, ainda não tinha ocorrido a nenhum compositor.
E assim surgia Ó Abre Alas.

Ó abre alas!
Que eu quero passar (bis)
Eu sou da lira
Não posso negar (bis)
Ó abre alas!
Que eu quero passar (bis)
Rosa de Ouro
É que vai ganhar (bis)

Era a primeira canção carnavalesca brasileira, que nascia como marcha-rancho. Claro que ela não se preocupou em usar nenhum rótulo; também não era o caso, pois se tratava de alguma coisa original. E certo que ranchos e cordões já se utilizavam de algumas canções, inclusive um tipo de marcha própria para rancho no seu andamento. O que a compositora fez foi fixar definitivamente esse gênero e criar a canção carnavalesca. Com tal antecedência fez isso que só vinte anos mais tarde se firmaria a prática da música de carnaval.
A partir de agora o carnaval ganhava música própria. Mais que um batismo, Ó Abre Alas confirmava o carnaval como festa popular e promovia o seu casamento com a música urbana. Parecia inevitável que carnaval e música se encontrassem num determinado momento dos seus desenvolvimentos específicos para formar o grande espetáculo da nacionalidade brasileira. Chiquinha Gonzaga foi apenas a promotora desse encontro.
Hoje um clássico do cancioneiro brasileiro, praticamente um patrimônio coletivo, a popularidade conquistada por Ó Abre Alas deve-se muito à sua propriedade, tanto musical quanto coreográfica e até mesmo de intenção. Essa talvez seja a explicação para o vigor que ainda apresenta. Própria inicialmente para acompanhar os passos de seus integrantes em desfile processional – sabemos que sua origem remonta às procissões baianas – a marcha-rancho revela-se mais tarde de grande propriedade em bailes carnavalescos. E isso porque ela tem o dom quase mágico de ser repousante: a pausa lenta fundamental como contraponto às inebriantes músicas carnavalescas. Também os versos não poderiam ser mais precisos, entendidos como um pedido de passagem nas multidões.

De qualquer forma a explicação para a criação original de uma canção para o carnaval por Chiquinha Gonzaga pode ser buscada na sua história de vida. Se Ó Abre Alas resultou num triunfo da espontaneidade de um processo criativo a personalidade de Chiquinha pode tornar isso facilmente compreensível. Sua obra ganha uma nova dimensão quando sabemos que ela atuou num contexto muito ingrato para um compositor.
Se por um lado o país estava ocupado culturalmente e o mercado invadido pela música européia, por outro lado o legado negro mostrava-se vigoroso e a música possibilitava a incorporação do espontaneísmo, uma característica já muito marcante entre os nacionais na segunda metade do século passado. O entusiasmo e a sedução que o brasileiro sempre revelou pela música popular e a sua nacionalização ainda cedo na história da nossa cultura talvez indiquem que, mais do que qualquer outra forma de arte, foi a música que permitiu a manifestação desse caráter espontâneo tão valorado entre os brasileiros.

O fato de ter sido uma mulher a libertária da música popular também é significativo. No caso de Chiquinha a desobediência foi a sua forma de contestar um poder que a esmagava. Não era muito diferente desobedecer um pai, um marido ou uma norma imposta. Ao mesmo tempo que se libertava ela libertava a música. Contrariamente a muitos compositores da época ela foge à alienação dominante. A sua obra distingue-se pela observância do que a rodeia, da captação do que é próximo e desta forma produz com originalidade, dando à música um toque brasileiro.

Numa época em que as classes sociais mantinham seus espaços rigidamente definidos Chiquinha não hesita em trazer para o salão o que era da rua. Mais uma vez a sua história de vida explica o fato dela não temer adotar uma manifestação de rua, como era o carnaval, dar-lhe batismo e reconhecimento. Enfim retirá-lo da bastardia.
Ela compreendia e traduzia musicalmente os anseios das camadas sociais dominadas com a facilidade de quem estava em sintonia com os mesmos sentimentos.
Mas é importante que se diga que ao escrever Ó Abre Alas Chiquinha se adiantou. Ainda não chegara o momento da canção carnavalesca e assim o povo não tomou conhecimento de sua música. Ficou sendo de uso privativo do pessoal do cordão durante algum tempo.
A prova da total despretensão da compositora está no fato de, em 1904, recolher o manuscrito da marchinha e adaptá-la para inclusão numa peça teatral como “maxixe de cordão”.

Em janeiro deste ano o teatro Apolo monta a peça de costumes cariocas de Batista Coelho intitulada Não Venhas!, uma paródia ao drama Quo Vadis?, com música da maestrina. O programa anunciado no Jornal do Commercio do dia 8, noite de estréia, enumera 27 números de música e chama a atenção do leitor: “Um cordão carnavalesco fantasiado em cena! Um grande maxixe no cordão!” Tratava-se de Ó Abre Alas, usado aqui para servir ao Terror dos Inocentes, cordão do Morro do Pinto.
Esta paródia na verdade é um retrato curioso da vida das camadas populares neste começo de século.
O primeiro número musical era cantado por Pedrinho, o “árbitro das elegâncias”, e anotado pela maestrina como Choro da Cidade Nova, o pitoresco bairro carioca de onde na década seguinte o samba despontaria para o sucesso nacional.
A melodia de Ó Abre Alas aparece ainda no primeiro ato cantando em coro com os seguintes versos:

Viva o Cordão!
Terror dos Inocentes! (bis)
Pessoá bãozão
Pessoá decente (bis)
Nós somos cabras,
De escorar a joça, (bis)
Não renegamos
A bandeira nossa. (bis)

“Pessoá bãozão” consta do libreto e da música impressa porque no manuscrito original a compositora grafou pessoá brigão.
Era o carnaval começando a despontar como tema nos palcos dos teatros, filão depois explorado à exaustão. Para se ter uma idéia dos gêneros musicais utilizados numa peça desse tipo, nitidamente popular, enumeramos os encontrados nos manuscritos da maestrina: choro, dueto recitativo, lundu, dobrado carnavalesco (Ó Abre Alas, também apresentado como maxixe de cordão e conhecido como marcha), modinha, chula, marcha, hino maxixe, valsa, fado português, giga espanhola e samba.
A peça estreou em janeiro. Neste carnaval de 1904 encontramos anúncios curiosos de baile à fantasia e espetáculo. Isto mesmo, baile precedido de espetáculo de atrações.
No Teatro Apolo se apresentava pela primeira vez os espetáculos-bailes. A peça Não Venhas! já havia saído de cartaz e retornara O Esfolado, revista de Vicente Reis e Raul Pederneiras, sucesso nos meses anteriores, também musicado pela maestrina. No dia 12 de fevereiro já se preparava “feericamente o elegante salão do teatro” para os quatro espetáculos-bailes.

No dia seguinte o teatro abria as portas para a apresentação dos dois primeiros atos de O Esfolado e anunciava para “as 11 horas em ponto entrada triunfal das distintas sociedades Democráticos, Fenianos e Políticos e mais um enorme número de cordões que se tiverem tempo, também, virão maxixar no teatro Apolo, salientando-se entre to dos o GRUPO TERROR DOS INOCENTES (do Morro do Pinto) formado pela fina flor da rapaziada cá da casa, que pintarão a saracura e o frade (de S. Bento) no meio do salão. Arrocha minha gente! Maxixe em penca! Depois, quando a coisa estiver mesmo quente e o pessoal da fina roda estiver todo em roda viva, os clarins estridentes anunciarão o invencível Clube do Pega o Cão formado por um grosso pessoal sem vintém que agora tem arame até para apanhar cachorros.”

A banda de música prometia a execução de saltitantes valsas, polcas, quadrilhas, mazurcas, schottisches e anunciava-se também com grande destaque para ser dançado por todos os mascarados o famoso Cake-Walk. Esta dança norte-americana, a primeira que encontramos referência, chegava ao Brasil para ser acolhida com alarido, obter algum sucesso (ainda em 1906 estava em voga) e cair no esquecimento.
Também o Teatro Recreio Dramático anunciava “4 espaventosos e popularíssimos bailes”. Sábado, 13 de fevereiro, “1.º deslumbrante, desopilante, mirabolante e eletrizante BAILE À FANTASIA com a assistência de diversas sociedades e Grupos de foliões, entre os quais se podem destacar os seguintes: Estrela dos Navegantes, composto de marmanjos e ninfas, que entrará às 10 horas. Grupo de bebês, intitulado Mamãe quero água. Grupo de 15 odaliscas, intitulado Servas do Amor. Grupo de machocazes, intitulado

Terror dos meninos que mamam e muitos outros que desejam ocultar o nome para surpresa.

“Às 11 horas, em cena aberta, onde se ostentará brilhante decoração dar-se-á uma amostrinha do que há de ser o Cá e Lá, a grande novidade que, para breve, se anuncia.
Quem amor não conheceu,
Quem nas danças não pulou,
Dizer pode que viveu,
Mas, de certo, não gozou!
Viva, pois, a pagodeira,
Leve o demo vis paixões,
Que na terra brasileira
Só se encontram foliões!
Cake-Walks, polcas e tangos
Vai haver em profusão,
Fora cinco ou seis fandangos
De quebrar “té ir ao chão!”

“Num coreto, construído no centro do teatro, a banda do 3.º Batalhão da Brigada Policial desencadeará as mais saltitantes valsas, polcas, mazurcas, quadrilhas e sobretudo dengosos tangos dos mais populares.”
Este era o repertório musical do carnaval de salão. O dengoso tango já era o samba que se prenunciava…
Cá e Lá, revista da qual a compositora participava, entraria em cartaz um mês depois. Para o sucesso! Aliás, nesse período, Chiquinha era um sucesso. Sua música estava em toda a cidade.
E o carnaval continuava. Só que agora incorporava a singela marchinha de Chiquinha Gonzaga.

O ABRE ALAS, O HINO CARNAVALESCO
Retirado da biografia escrita por Edinha Diniz, Chiquinha Gonzaga: uma história de vida.

Uma opinião sobre “Ó Abre Alas, o hino carnavalesco

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