Exclusiva com a biógrafa Edinha Diniz

Exclusivo!

Edinha Diniz revela pela primeira vez os bastidores da sua pesquisa sobre Chiquinha Gonzaga, em entrevista especial ao site.
Biografia: Chiquinha Gonzaga: uma história de vida.

Por Wandrei Braga, em fevereiro de 2005

Edinha Diniz, biógrafa

1) O marco zero. Quando o nome Chiquinha Gonzaga surgiu em sua vida?
Por volta dos anos 70, associado à marchinha Ó abre alas. Era só isso o que eu sabia antes de começar a pesquisa, em 1977. Soa estranho que não soubéssemos quase nada dessa que foi uma das figuras mais importantes da luta pelas liberdades no país. E isso cento e trinta anos depois de ter nascido! Mas considero que o esquecimento foi um dos preços que Chiquinha Gonzaga pagou por sua audácia.

2) Por que ou para quê se dedicou a esta pesquisa?
Tudo começou com a encomenda de um roteiro para um documentário que Ângela Cozetti Pontual, jornalista hoje residente em Nova York, pretendia realizar. Ela se apaixonara pela personagem ao produzir um disco de chorinho naquela ocasião, 1976, com o musicólogo Mozart de Araújo. Imaginara uma vida pessoal interessante por trás da compositora consagrada e terminou descobrindo o arquivo pessoal da Chiquinha na SBAT. Nesse momento eu entro na história para elaborar o roteiro e desenvolver a pesquisa. Jamais imaginei que passaria os seis anos seguintes dedicada a esse trabalho. Era uma tarde do mês de agosto quando Ângela levou-me à presença de Djalma Bittencourt, então superintendente da SBAT, e este confiou-me o arquivo inédito da maestrina. A eles dois eu dediquei o livro, publicado em 1984.

3) Sendo uma vida e obra o objeto de sua pesquisa, o que foi mais fácil e mais difícil nesta busca de informação?
O maior facilitador, digamos assim, em se tratando de pesquisa, foi poder trabalhar com o rico arquivo pessoal da Chiquinha. Nenhum dos seus biógrafos anteriores teve acesso a esse material; nem a folclorista e jornalista Mariza Lira nem o teatrólogo e sobrinho-neto da maestrina, Geysa Bôscoli. O arquivo foi fundamental, mas apresentava lacunas. Silenciava, por exemplo, a respeito das suas relações amorosas com João Batista de Carvalho e com Joãozinho. Posso dizer que o desvendamento da relação com Joãozinho foi a parte mais difícil e delicada da pesquisa.

4) Chegou a pensar em desistir?
Pensei em desistir uma vez, mas não por falta de material de pesquisa, e sim por falta de financiamento. Afinal, sustentei sozinha os custos, ao longo de toda a pesquisa.

5) Uma mulher revelando e redescobrindo a vida de outra mulher. Em algum ponto desta viagem ao mundo de Chiquinha Gonzaga você pode ver a sua história se confundindo com a dela?
Apenas um ponto um comum nas nossas trajetórias: a convicção, após duas tentativas, da falta de vocação para o casamento. Aí talvez eu tenha me permitido uma interpretação a partir da minha história pessoal.

6) Até onde a pesquisadora se mantém neutra diante dos dados ou, ao contrário, usa a sua emoção como instrumento?
Fui sincera na apresentação do livro, quando falo da pretensão de objetividade. Confesso que a simpatia – que se insinua facilmente nas biografias – neste caso se intrometeu entre investigador e objeto investigado. Ou seja, a neutralidade foi perseguida, mas a simpatia foi inevitável. Sobre o uso da emoção, adotei intencionalmente a audição da música da Chiquinha para resolver certas questões de texto, como, por exemplo, o relato da sua morte. Não me conformava em apenas registrar os dados. Lembro-me de conversar sobre isso com o historiador e pesquisador Humberto Franceschi, meu amigo, que me deu uma ajuda inestimável durante a redação. Ele me aconselhou a abandonar o texto por um tempo e só ouvir as músicas dela até me sentir inspirada. Por sorte a concertista Clara Sverner já havia gravado dois LPs com a produção de Chiquinha – material, aliás, do arquivo – e, entre as peças, uma marcha fúnebre belíssima. O sentimento de luto que Chiquinha expressa nessa música, e que Clara nos transmite na gravação, me guiou na redação do último parágrafo.

7) Qual é a sensação de reviver a história de vida de uma pessoa?
A questão não é reviver uma história de vida, mas sim construir uma história, com tudo o que isso significa, sobretudo para a mulher brasileira. Não se esqueça que comecei a desenvolver a pesquisa nos anos 70, década muito fecunda nos estudos da condição feminina.

8) Diante de tantas informações, acredito que tenha sido difícil selecionar os dados para a biografia.
Trabalhei com muita informação, sim, mas, como tive tempo, pude executar o expurgo de dados sem dor. Nessa etapa precisamos usar o espírito científico para eliminar os dados menos relevantes. Claro que é penoso desprezar certos dados que nos custaram às vezes até sacrifício, mas é preciso fazê-lo, sob pena de comprometer o resultado.

9) Teria alguma coisa, fato ou não, que gostaria de ter dito e não pode?
Tive a meu favor o distanciamento histórico. Foi preciso esperar um século para livrar Chiquinha Gonzaga da condenação a que foi submetida, mas finalmente ela pôde ser compreendida. Uma prova disso foi o sucesso da minissérie da TV Globo em 1999 com o público infantil, o que surpreendeu o IBOPE. Durante minhas viagens efetuando palestras, assisti em Curitiba a uma turma de 6ª série dramatizar a vida da Chiquinha. Em determinada cena, as meninas que representavam as filhas Maria e Alice reclamavam da mãe (Chiquinha) ao piano, dizendo: – “Poxa, mamãe, você não nos dá atenção! Você só dá atenção à sua música!” Isso mostra a identificação que as crianças fizeram entre Chiquinha e a mãe moderna, que trabalha, luta e tem outros interesses além da vida familiar. Ou seja, agora, até as crianças compreendem Chiquinha Gonzaga.

10) Durante o desenvolvimento da pesquisa e os muitos contatos em busca de informação, o que você relataria como situação especial?
Vivi situações emocionantes com os descendentes. Em 1977, alguns ainda recebiam direitos autorais da obra de Chiquinha e, portanto, tinham contato com a SBAT. Era o caso dos herdeiros de João Gualberto com Rita de Cássia, que viviam no Rio, das filhas de Maria do Patrocínio, e do filho único de Hilário. Também da viúva de Joãozinho. Para descobrir os familiares de João Batista de Carvalho e os herdeiros de Alice lancei mão de técnicas especiais de investigação. Quanto aos descendentes de João Gualberto do segundo casamento, moradores em São Paulo, encontrei pistas falsas durante a pesquisa e só depois do sucesso nacional da minissérie, com a reabilitação da figura de Chiquinha, esse ramo da família apareceu. Cada encontro foi uma revelação. Devo a cada um dos descendentes momentos de grande emoção, até mesmo às filhas de Maria, que morreram sem perdoar a avó. Foram muitas as histórias vividas com eles, mas isso daria outro livro.

11) O que mais te surpreendeu?
Toda revelação carrega surpresa, mas o mais surpreendente de tudo foi a descoberta da certidão de batismo de Chiquinha na Igreja de Santana. Isso aconteceu no primeiro ano da pesquisa, quando eu ainda trabalhava pensando apenas no roteiro do filme da Ângela. Como a realização do documentário dependia de verba pública, e isso demora, quis complementar a pesquisa com dados fora do arquivo. Dirigi-me à igreja apenas para levantar aquele documento básico de identificação, portanto, nada mais burocrático numa pesquisa biográfica. O que se sabia do nascimento de Chiquinha era o que estava consagrado a partir das duas biografias publicadas: aristocrata, filha de um marechal de campo do Império, de linhagem nobre. Ao me deparar com o registro no livro de batismo referente ao ano de 1847, em pé na sacristia, tive uma das mais fortes sensações já experimentadas em minha vida. Não pude acreditar! A história era outra, a verdade era outra, a origem era outra. Confesso que minha confiança com relação à História ficou para sempre abalada. Soube depois, já em 1983, que o centenário de nascimento de Getúlio Vargas havia sido comemorado no ano errado por conta desse tipo de negligência. Foi a partir daí que pensei em livro; resolvi trabalhar no sentido de fazer uma revisão histórica. O seu nascimento humilde, a origem da mãe, tudo isso passava a fazer sentido e tornava sua história mais coerente. Agora era possível compreender sua música, sua luta pelas causas populares, sua personalidade. A partir daquele momento achei que valia a pena contar aquela história.

12) A biografia: Quando li pela primeira vez, tive a impressão de que você havia se perdido na história de Chiquinha. Eu esperava que o foco da pesquisa fosse a vida pessoal da compositora. Foi quando me assustei com tantas informações. Lendo pela segunda vez pude perceber o seu propósito como escritora e pesquisadora, não somente de Chiquinha Gonzaga, e sim de tudo e todos que a cercavam na época em vida. Agora, sim, pude fazer a viagem que você propôs, segura e fantástica. O livro não só conta a vida de Chiquinha como também contextualiza com precisão e riqueza de detalhes a época em que viveu. O que fez você escrever com este propósito? Já estava previsto desde o inicio ou os fatos foram se apresentando e fazendo-se imprescindíveis?

O livro resultou num ensaio porque eu era socióloga naquela época. Digo era porque hoje eu já me distanciei muito da Sociologia. Enfim, para um sociólogo, e de formação marxista como eu era, é difícil perceber o indivíduo. Minha unidade de estudo era classe social e meu interesse estava voltado para a mudança da sociedade, portanto, considerava biografia um gênero menor. É preciso entender que publiquei há mais de vinte anos. Esse livro é considerado biografia porque hoje, na sociedade neoliberal, o gênero ganhou força no mercado editorial. Mas o que fiz foi um ensaio sócio-histórico. Além do fato de ser socióloga, logo, viciada em contextualização, também senti necessidade, para construir a história da Chiquinha, de trabalhar outras histórias, como a da música popular, do teatro musicado, do Rio de Janeiro, do Carnaval, da conquista de espaço social pela mulher e dos direitos autorais. O meu material de pesquisa me autorizava a revisar essas histórias. Encarei o livro como relatório de pesquisa, ou seja, uma forma de comunicar os resultados da investigação à comunidade interessada – que pensava ser apenas os pesquisadores de música popular.

13) O que representou para você o fruto de seu trabalho?
Fiquei surpresa com a boa acolhida ao livro quando foi lançado. Acho que chegou num momento importante da história da mulher brasileira. Afinal, a conquista de direitos por parte da mulher foi a luta mais bem sucedida do século XX e Chiquinha tem um papel nessa história. Mesmo considerando a história mundial, nos impressiona a antecipação com que ela viveu a liberdade pessoal. Chiquinha Gonzaga foi uma mulher do século XXI vivendo no século XIX. Embora a pesquisa tenha gerado peça de teatro, escrita por Maria Adelaide Amaral; enredo de escolas de samba do Grupo Especial, Mangueira e Imperatriz Leopoldinense; discos como os de Clara Sverner, Antônio Adolfo, Olívia Hime e outros, tudo isso antes da minissérie da TV Globo, foi a partir do seriado que a história de Chiquinha Gonzaga se popularizou. Meu livro, que tinha metade da 2ª edição no depósito da editora, se esgotou em uma semana. A partir dali as edições se sucederam. Parecia que o público queria confirmar a veracidade da história que a televisão mostrava. O mesmo aconteceu com as gravações. Uma dezena de cds foram gravados. Os concertos lotavam. Hoje Chiquinha Gonzaga é verbete em importantes enciclopédias no exterior. Sua música está sendo continuamente gravada e executada em concertos e vem merecendo trabalhos acadêmicos. Mas ela também dá nome a centro comunitário em favela e a ocupação de famílias sem teto no Rio de Janeiro. São homenagens de mulheres, como ela, que lutam por liberdade e dignidade.

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